Um anos após a nova legislação, o investimento caiu, a operação ficou mais travada e o Custo Brasil aumentou. Segundo as autoridades, as mudanças começaram, mas já se fala na próxima Lei dos Portos.
Há cenas que beiram o bizarro no Porto de Santos, o maior do país, pelo qual passa 25% do comércio exterior brasileiro, algo como US$ 122,5 bilhões em 2013. Pelas ruas que dão acesso aos terminais de grãos, garis recolhem mensalmente 36 toneladas de lixo. A varrição diária inclui soja, milho e açúcar que caem dos caminhões, em grande quantidade. Em outro ponto, a área em que caminhões descarregam açúcar foi apelidada de Holiday on Ice, graças ao efeito causado nos passantes. Do outro lado, na margem esquerda do porto, cerca de 4,1 mil famílias das favelas de Conceiçãozinha e Prainha vivem vidas praianas tendo navios gigantescos no quintal: crianças brincam e homens pescam em águas contaminadas por metais pesados e o próprio esgoto da favela. Há ainda os vários problemas das empresas: estruturas precárias, terminais que só operam graças a medidas judiciais, problemas ambientais variados e – tão impressionante quanto – alguns bilhões de reais em investimentos parados.
O pior: nada disso é novo. Com a promulgação da nova lei dos portos, há um ano, esperava-se que esse cenário não só mudasse, como a modernização, o ganho de competitividade, a maior competição e a redução do Custo Brasil já tivessem começado a acontecer. O próprio governo tinha a expectativa de receber R$ 54,2 bilhões em investimentos nos portos até 2017, sendo que R$ 31 bilhões chegariam até o ano que vem. Não só nada disso aconteceu, como o efeito foi o oposto. Segundo a Inter.B Consultoria, o investimento no setor, que alcançou R$ 7 bilhões em 2012, caiu para R$ 4,53 bilhões no ano passado, uma retração de 35%. Em relação ao PIB, o valor equivalente percentual é de 0,09%, o mesmo investido entre 2007 e 2011. Também houve aumento no Custo Brasil pelas mudanças trabalhistas e uma série de efeitos que atravancaram os negócios.
Como no setor de energia, cuja principal meta das mudanças era reduzir o preço pago pelo consumidor, a intenção do governo federal nos portos também foi nobre. “O objetivo foi aumentar a competitividade na logística do transporte de carga, que custa 13% no Brasil, ante 8% ou 9% nos países mais desenvolvidos”, afirma Cláudio Frischtak, presidente da Inter.B. Porém, a maneira de chegar lá, como disseram vários entrevistados, mais uma vez foi o problema. “Nos portos, houve a repetição do modus operandi desse governo, já visto em outras áreas: autoritário, com uma lei imposta de cima para baixo e centralizando o comando em Brasília”, diz Frischtak. “É um padrão que gera incertezas e desconfianças, em vez de atrair e facilitar os investimentos.”
O principal problema para o atravancamento do setor foi a mudança da lei. Para que pudesse ser posta em prática foi necessária a elaboração de artigos no último ano. “Não era preciso mudar e passar uma régua em todas as regras do setor portuário”, diz Claudia Bonelli, sócia do escritório Tozzini Freire. “Havia problemas, sim, na lei anterior, mas algumas mudanças pontuais teriam sido suficientes para melhorar a competitividade e não teriam criado toda a incerteza jurídica de um novo marco regulatório.” O mesmo recado foi transmitido por entidades setoriais e empresas ao governo, antes de a nova lei ser implantada: numa área em que os investimentos maturam e têm retorno no longuíssimo prazo, trocar a legislação significa mexer com decisões futuras e com aportes feitos, inclusive, no passado. Cálculos de Frischtak indicam que o custo da incerteza regulatória aumenta a taxa de retorno para o capital em 150 pontos, ou 1,5%. “É muita coisa”, diz ele.
“O modus operandi autoritário do governo se repetiu também nos portos”, diz Frischtak
Houve ainda outro agravante nos planos de reformulação da área, de acordo com especialistas. A pressa na elaboração de um projeto que abrangesse todo o setor, no país inteiro – sem uma discussão ampla com os envolvidos – fez com que ele tivesse erros e acabasse numa longa discussão no TCU. “Foi uma mudança estrutural muito grande, infelizmente concretizada num ano anterior ao da eleição”, diz Maria Eduarda Berto, da EBP (Estruturadora Brasileira de Projetos), responsável pelos estudos técnicos. Além das restrições do TCU ao modelo apresentado, a própria participação da EBP, que pertence a nove bancos e já tinha sido responsável por outros 15 estudos semelhantes em obras públicas, foi discutida num processo que levou sete meses. “Esse processo era mais complexo porque envolvia vários modais e interesses”, diz Marcelo Saintive, presidente da EBP.
Até o fim de junho, o TCU não havia tomado uma decisão sobre os arrendamentos. Porém, muitos investidores tinham dinheiro e times preparados há meses. “Tenho interesse em áreas e já me estruturei financeiramente”, diz Antonio Carlos Fonseca Cristiano, dono da Marimex, uma das maiores operadoras de contêineres de Santos. Segundo Claudia, as consultas de clientes interessados também se multiplicaram no escritório. “Fomos um dos primeiros a manifestar interesse em antecipar a renovação da concessão e participar das licitações, especialmente contêineres e veículos”, afirma Mauro Salgado, diretor comercial da Santos Brasil, a maior da América Latina. “Temos não só os recursos humanos como meios para obter fundos necessários para participar nesse processo.”
O argumento do governo para mudar totalmente a lei foi evitar uma colcha de retalhos para a área. Para vários especialistas, porém, o objetivo seria criar uma estrutura que permitisse centralizar as decisões em Brasília, ao mesmo tempo em que as autoridades portuárias (as companhias docas), os conselhos deliberativos (Conselho de Autoridade Portuária) e a agência reguladora do setor (Antaq) fossem enfraquecidos, para evitar longas discussões nas decisões a serem tomadas. “O problema desse modelo é que, se a intenção do político de plantão é boa e correta, muito bem”, diz Claudia. “Mas a estrutura, tal qual foi montada, deixa o setor portuário na ótica da caneta da vez.”
As impressionantes filas de 25 quilômetros de caminhões parados, à espera de sua vez de descarregar grãos nos portos, em 2013, evidenciaram um problema mais do que sabido: a infraestrutura brasileira, após décadas sem investimentos, havia chegado ao limite. As imagens deram força à aprovação da lei que, em linhas gerais, permitiu que terminais privados movimentassem cargas próprias ou de terceiros e mudou a relação trabalhista do setor. Ela também deveria ter acelerado novos arrendamentos em terminais públicos e antecipado a prorrogação de contratos já existentes. Até agora, isso não aconteceu.
A lei permitiu a criação de terminais privados que podem movimentar cargas suas e de terceiros – uma figura que não existia até então – e também tornou legais empreendimentos como a Embraport e a Portonave, que são terminais privados em portos públicos. A medida foi aplaudida porque incentivava a competição e ampliava a capacidade dos portos. “Houve um choque de oferta em Santos [com a entrada em operação de novos terminais]”, diz Henry Robinson, presidente da Brasil Terminal Portuário (BTP). “Mas, como numa nova pizzaria que chega ao bairro, saem ganhando os que gostam de pizza.” A BTP não está operando com capacidade plena por falta de dragagem, cuja licitação deve sair até o fim do ano. Apesar da maior oferta em Santos, os preços da movimentação de contêineres já vinha caindo desde a lei anterior, de 1993 (leia tabela à pág. 89).
Ao mesmo tempo que aumentou a competição, a mudança na lei criou novas incertezas. “Os arrendatários que já tinham contratos em terminais públicos vão passar a competir com terminais privados, em portos privados, com estruturas diferentes e mais ágeis”, diz Claudia. “Isso é isonômico?” Segundo ela, em alguns anos, quando o tema estiver sedimentado, há o risco de empresários buscarem na Justiça o direito de se submeter às mesmas regras. Mais uma vez, a garantia dessa isonomia estará nas mãos da Secretaria Especial de Portos (SEP), que tem status de ministério, e da Antaq. “O problema é que a agência reguladora enfraqueceu”, diz o diretor de uma operadora. “Ela passou a ser subordinada à secretaria de portos, o que não era antes.” Segundo ele, há vários sinais de que o Executivo não confia na agência. “Tanto que a regra emitida por ela em janeiro, sobre como fazer a prorrogação contratual, não foi levada adiante”, diz.
“Somos grandes interessados no crescimento do porto, mas há impactos que precisam ser Mitigados”, diz Barbosa
Nos terminais públicos, a novidade mais incômoda é a trabalhista que, na prática, aumentou o Custo Brasil. Agora, os arrendatários são obrigados a contratar empregados por meio das Ogmos (Órgão Gestor de Mão de Obra). O objetivo era fazer com que trabalhadores avulsos fossem priorizados na contratação. “É inexequível”, diz o diretor de uma grande operadora. “Se eu precisar contratar cem motoristas de caminhão e a Ogmo só tiver 20, ela os buscará no mercado, o que cria uma etapa – e um custo – desnecessário.”
Além disso, a nova lei também implantou categorias sindicais separadas. Agora, as empresas têm de negociar com portuários, conferentes, estivadores, operadores de guindaste, de caminhão, capatazes, vigias e consertadores, entre outros. “Na prática, os funcionários deixarão de ser promovidos”, diz esse diretor. “O cargo mais almejado no porto é o de operador de portainer [guindaste de grande porte, usado para carregar e descarregar contêineres de navios]. Muitos dos que hoje trabalham nessa função começaram em cargos mais simples, foram treinados e promovidos.” Para ele, os sindicatos não deixarão as promoções acontecer, para evitar a perda de bases, e pressionarão por salários maiores, mesmo em funções em que a qualificação for menor. “Ou seja, teremos empregados frustrados, talvez ganhando um pouco mais, mas que não conseguem progredir na carreira”, diz. “É mais Custo Brasil, sem dúvida.”
“Credo desse governo”
A mudança trazida pela nova lei que levanta mais questionamentos em todo o porto é a centralização da gestão em Brasília. “A experiência anterior que tivemos foi com a Portobrás [órgão extinto no governo Collor] que sofria por centralizar tantas coisas diferentes, em lugares tão distantes”, afirma Claudio Loureiro de Souza, diretor executivo da CentroNave, entidade que reúne os armadores. Ele está longe de ser o único a recear que a gestão do porto se torne ainda mais arrastada: a preocupação foi expressa por advogados, operadores, entidades de classe e mesmo órgãos públicos, acostumados à morosidade do sistema. “Tirar poder da Codesp [as docas de Santos] é mais um complicador”, diz César Valente, gerente da Cetesb em Santos. “Em vários momentos conseguimos nos aliar à Codesp para pressionar as empresas a resolver irregularidades ambientais.” Se antes a Codesp fiscalizava e multava, agora ela apenas fiscaliza e tenta resolver os problemas na instância administrativa. Para diversos presidentes de companhias docas ouvidos, eles deixaram de ser gerentes para se tornar zeladores dos portos.
A nova diretoria da Codesp nega que haja qualquer perda de poder. Ao contrário. “Perder o canhoto de multas é perder poder?”, diz Angelino Caputo, que saiu da Casa Civil em abril para presidir a Codesp. “Não, não é. Se a empresa não se ajustar ao que determinamos, vira infração grave e ela é multada pela Antaq.” Para ele, não existe fronteira entre companhia docas e SEP e, até mesmo, Antaq. “Somos uma única equipe que tem uma parte no porto e outra em Brasília”, afirma. “Eles cuidam da política do setor e traçam a estratégia com a visão nacional, enquanto estamos focados na realidade local.”
Segundo Luis Montenegro, diretor de planejamento estratégico da Codesp, a mudança fez com que o poder institucional da autoridade portuária se tornasse maior. “Qualquer decisão que a gente toma hoje é feita com mais tranquilidade porque tem a diretriz do ministério e o aval da agência reguladora”, diz ele. “Antes, as decisões eram tomadas sozinhas pela autoridade portuária, quase sem efeito prático.” De acordo com ele, havia muito desgaste na compra de brigas institucionais. “Na questão das filas [de caminhões], por exemplo, chegou um momento em que precisamos discutir com os donos de cargas para que assumissem certas responsabilidades”, afirma. “Eu tinha limitação para conseguir falar com os grandes produtores nacionais, mas quando o Ministério da Agricultura foi envolvido, a coisa mudou de figura.” Em casos nos quais prevejam um embate jurídico, diz, a Codesp pode acionar a Advocacia Geral da União (AGU). “Isso muda toda a argumentação, já na assinatura de contratos.” Os ganhos de sinergia também podem ser ampliados no desenvolvimento de sistemas, a ser adotado em todo o país.
Mais uma preocupação para os portos públicos: o Porto de Roterdã deve ser sócio e gestor do Porto Central Presidente Kennedy (ES), que pretende ser o maior porto privado do país
Executivos do setor reconhecem o esforço por melhorias da nova gestão. “Eles estão empenhados em ter bons resultados”, diz Salgado, da Santos Brasil. Na busca pela eficiência da autoridade portuária, foi implantado um PLR (Programa de Participação nos Lucros e Resultados) dos dirigentes, bem como um sistema de honorários mensais variáveis. Assim, não só o bônus anual, como o salário mensal podem variar. “O PLR está ligado a metas da empresa, enquanto o honorário variável é calculado sobre metas de gestão”, diz Caputo. “Se um diretor tiver de concluir um projeto em determinado prazo e não puder fazê-lo porque teve dificuldades com o Ibama ou a prefeitura e ficou sentado esperando a solução, ele já perdeu parte do salário.” A Codesp conseguiu atingir 98% das metas de gestão trimestrais estabelecidas pela SEP, na primeira avaliação. “A ideia é que as metas comecem a ser apertadas até que, no futuro, 50% da remuneração seja variável.”
Outro projeto de ganho de eficiência foi a contratação da consultoria Deloitte para mapear processos, identificar gargalos e ineficiências. As soluções serão propostas pelos participantes do sistema. “A consultoria trouxe a metodologia, mas é um projeto da SEP com as docas e, espero, com o apoio da comunidade portuária”, afirma Caputo, para quem esse projeto é a “menina dos olhos”. “Temos muita coisa para evoluir em termos de agilidade do porto e eles é que vão dizer onde o negócio pega.”
Paulo Barbosa, prefeito de Santos, é um dos que estão doidos para serem ouvidos pela Codesp. “Há uma grita geral em relação à falta de diálogo com o governo federal: não foram ouvidos nem a esfera pública e muito menos o setor portuário”, diz Barbosa. “Do jeito que as mudanças foram feitas, de maneira impositiva, nada vai funcionar.” O problema que envolve a cidade diz respeito ao terminal de grãos, na Ponta da Praia. O corredor de exportações, por onde sai boa parte das commodities produzidas pelo país, virou bairro nobre e objeto de especulação imobiliária. Isso fez com que as reclamações dos moradores crescessem.
“Quando a soja não é varrida, a chuva molha e o sol fermenta os grãos”, diz Valente, da Cetesb, que recebeu mais de cem reclamações no ano passado sobre o porto. “O cheiro é de galinheiro.” Além disso, o medidor de qualidade do ar do órgão localizado na mesma região também indica índices piores em relação ao resto da cidade. Nuvens de poeira podem ser vistas no carregamento dos navios, de longe. “Somos grandes interessados na expansão e no crescimento econômico do porto, mas há impactos negativos que precisam ser mitigados”, diz Barbosa. “Tínhamos um plano de zoneamento portuário discutido à exaustão com todos os participantes, inclusive o governo federal, no qual não haveria ampliação para o transporte de grãos ali, e ele foi ignorado.” O resultado é que a cidade de Santos criou uma lei tentando impedir que os grãos ficassem na Ponta da Praia e o governo federal foi à Justiça, já que a área portuária é da União. O processo está no Supremo. Para a Codesp, o governo federal está pensando no longo prazo, quando o modal ferroviário diminuirá o impacto dos caminhões e os investimentos dos novos arrendatários diminuirão a poluição.
Já na outra margem do porto, no Guarujá, a transferência de 1.052 famílias da favela de Conceiçãozinha para um complexo habitacional, prevista para acontecer em 2013, não foi realizada. A obra demorou mais que o previsto e a mudança deve ser feita somente no próximo ano. Das mais de 4 mil famílias moradoras das favelas, só algumas serão transferidas. Nos planos de arrendamento do porto, não está prevista a remoção total da favela: os moradores continuarão com navios em suas janelas ou tendo de recolher a roupa na hora do carregamento de açúcar. “Eles gostam de morar lá”, diz Caputo. A retirada só será discutida caso a área se torne prioridade à expansão da atividade portuária. “Se ela se tornar essencial, discutiremos uma solução social”, diz Montenegro.
“Se a favela se tornar essencial
à expansão, buscaremos uma solução social”, diz Montenegro
Além das disputas locais, as idas e vindas dentro do próprio sistema político também podem dificultar os objetivos das autoridades. Um balanço da gestão da SEP elaborado há três meses mostrava que quase todas as metas estabelecidas não haviam sido cumpridas ou foram cumpridas só parcialmente. O próprio Caputo, depois de ter trabalhado no desenvolvimento de um artigo que determinava o regime de contratação simplificado nos portos, em sua época na Casa Civil, viu a possibilidade de o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) ser estendido também para a área, numa das mudanças de leis no Congresso. “Não precisaríamos aí regulamentar a lei dos portos”, diz. Porém, os legisladores voltaram atrás e o regime incluiu só presídios. “Agora será necessário avaliar se será retomado de forma isolada ou se haverá uma nova tentativa [mais ampla]”, afirma.
Outro complicador é a dificuldade em lidar com o pessoal escasso e grupos poderosos. Os lobbies e interesses são fortíssimos e aparecem das mais diversas fontes. Num exemplo simples, Valente mostra o número crescente de advertências e multas aplicadas a empresas, conforme a movimentação do porto aumentou nos últimos anos. “Essas empresas têm um corpo jurídico gigante”, diz. “Qualquer ação da Cetesb tem uma reação imediata e o andamento é lento.”
As dificuldades são tantas que há quem aposte numa eventual volta atrás na nova lei, caso a presidente Dilma Rousseff não seja reeleita. “Não haverá a revogação ou a edição de uma nova lei, mas acredito que o espírito será substancialmente mudado”, diz um operador. Ele não é o único a ter essa opinião. “A questão trabalhista terá de ser revista, bem como a centralização em Brasília.” Para ele, o resultado serão alguns anos perdidos com a paralisia dos investimentos. “Mas, o Brasil vive perdendo tempo, não é mesmo?”
Fonte: Época Negócios On Line